Em uma estrondosa vitória para o presidente Donald Trump, a Suprema Corte decidiu, na sexta-feira (27/6), por 6 votos a 3, que juízes federais não podem emitir “liminares universais” (as que têm validade para todo o país), para bloquear a vigência de decretos presidenciais. “Nenhum direito está seguro no novo regime jurídico que a corte está criando”, lamentou a ministra Sonia Sotomayor no voto vencido. A decisão foi tomada no caso Trump v. Casa, Inc., em que 22 estados democratas e algumas organizações pedem à Suprema Corte para invalidar o decreto de Trump que pretende acabar com o direito constitucional à cidadania automática de todos os bebês nascidos em territórios dos EUA.
Mas a maioria conservadora-republicana da corte decidiu deixar essa questão em banho-maria até o próximo ano judicial, que começa em outubro. E se concentrar na questão das liminares universais. A justificativa foi a de que o governo Trump não pediu à corte para examinar a questão da cidadania automática. E, portanto, não é necessário decidi-la em uma pauta de emergência. “Em vez disso, a corte decidiu examinar se, de acordo com a “Lei do Judiciário” (Judiciary Act) de 1789, os tribunais federais têm ‘poder equitativo’ para emitir liminares universais”, em resposta ao argumento do governo de que elas não são válidas – e ao pedido à corte para suspender todas as liminares universais emitidas pelos juízes até agora.
Em contextos jurídicos, nos EUA, “poder equitativo” (equitable authority) se refere ao poder de um tribunal de conceder tutelas com base em princípios de justiça e equidade, em vez de apenas em regras jurídicas rígidas. O voto da maioria expressa concordância com Trump: “Quando a corte conclui que o Poder Executivo agiu ilegalmente, a resposta da corte não pode exceder seu poder também. Decidimos que liminares universais provavelmente excedem o poder equitativo que o Congresso atribuiu aos tribunais federais. A corte defere os pedidos do governo para a suspensão parcial das liminares universais, mas apenas na medida em que tais liminares sejam mais amplas do que o necessário para proporcionar a tutela completa a cada autor com legitimidade para processar”.
“A emissão de liminares universais só pode ser justificada como um exercício de poder equitativo. O Congresso não concedeu tal poder aos tribunais federais. A Lei do Judiciário de 1789 concedeu aos tribunais federais jurisdição sobre todos os processos de equidade e, ainda hoje, essa lei autoriza os tribunais federais a emitir tutelas equitativas. [Porém], esta corte decidiu que só podem emitir os tipos de tutelas equitativas tradicionalmente concedidas pelos tribunais de equidade nos primórdios do nosso país”. Em seu voto, a maioria declarou que há outra razão para coibir liminares universais: “O governo irá provavelmente ser bem-sucedido no exame do mérito da questão”. Até porque, segundo a corte, “a injunção universal não tem pedigree histórico, o que a deixa fora dos limites do poder equitativo de um tribunal federal, segundo a Lei do Judiciário”.
A consequência dessa decisão é a de que qualquer concessão de liminar por juiz federal, que bloqueie atos do governo, só passa a valer para os autores das ações. “As recusas iniciais do Tribunal em conceder tutela a partes não envolvidas [no processo] são consistentes com os princípios específicos de cada parte que permeiam a compreensão de equidade do tribunal. Nem a tutela declaratória, nem a medida liminar, podem interferir diretamente na execução de leis ou posturas contestadas, exceto no que diz respeito aos autores federais específicos.”
Exceção à regra
A maioria admitiu que pedidos de liminar, feitos por estados, devem ser uma exceção à nova regra. Concordou com um juiz federal, em Massachusetts, segundo o qual uma liminar universal é necessária para garantir aos estados uma tutela completa. Uma liminar limitada a autores individuais da ação seria impraticável, no caso de benefícios concedidos a seus habitantes, com verbas federais. No caso, por exemplo, do direito à cidadania por nascimento, o estado teria de expender milhões de dólares, com um enorme encargo administrativo, para operar programas sociais que beneficiam recém-nascidos e crianças de tenra idade.
Crianças mudam com seus pais para dentro ou fora do estado ou nascem em territórios diferentes dos de seus pais. As mulheres grávidas, ao sair às pressas para o hospital porque a bolsa estourou, não poderiam esquecer de colocar na sacola provas de sua cidadania americana. Assim, os 22 estados que moveram a ação para manter a validade da liminar universal – no caso, agora, dentro de seus territórios – ficam isentos da limitação estabelecida pela decisão da Suprema Corte – e as crianças serão cidadãs. Nos 28 estados que não contestaram o decreto de Trump, quase todos republicanos, as crianças serão apátridas.
A decisão da maioria oferece, no entanto, uma sugestão para as mães que queiram contestar na justiça o decreto de Trump que pretende negar a seus filhos o direito à cidadania por nascimento — apesar de ser garantido pela 14ª Emenda da Constituição — mas não podem fazê-lo sozinhas: mover ações coletivas. No entanto, mover uma ação coletiva é uma coisa muito complicada nos EUA. Há muitas exigências a serem cumpridas, para que os autores da ação recebam um “certificado de ação coletiva”, expedido pelo juiz.
Entre elas, a ação deve ter: 1) dezenas de membros (numerosity); 2) uma questão de Direito comum a todos os seus membros (commonality); 3) reivindicações e defesas do(s) representante(s) típicas (ou as mesmas) de todos os membros da ação (typicality); 4) Proteção de forma justa e adequada, pelo(s) representante(s) das partes, dos interesses de todos os envolvidos na ação (adequacy of representation).
Votos vencidos, porém contundentes
O voto dissidente, escrito pela ministra Sonia Sotomayor, ao qual aderiram as outras duas ministras liberais, Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson, tiveram repercussão significativa na comunidade jurídica — e destaque na imprensa. Provavelmente porque há um desconsolo geral com as ajudas que a Suprema Corte vem dando a Trump. A ministra escreveu que a corte entrou no jogo do governo. “O governo pediu à corte para decidir que, não importa quão ilegal seja um decreto, os tribunais nunca podem dizer ao Executivo para parar de executá-lo. Em vez disso, o governo pode aplicar o decreto, cuja legalidade ele não defende, contra qualquer um, exceto os peticionários que moveram a ação”.
“A manipulação neste pedido é evidente e o governo não faz qualquer tentativa de escondê-la. No entanto, vergonhosamente, este tribunal joga a favor do governo. A maioria deste tribunal decide que esse pedido, dentre todos os casos, proporciona a ocasião apropriada para resolver a questão das liminares universais e pôr fim a essa prática secular de uma vez por todas. Na pressa de fazê-lo, o tribunal desconsidera os princípios básicos de equidade, bem como o longo histórico de medidas liminares que são válidas em todo o país, diz o voto.”
Para a ministra, o governo se apressou em reconhecer os méritos do pedido do governo. E decidiu que as liminares universais provavelmente excedem o poder equitativo que o Congresso garantiu aos tribunais federais. “A maioria, que prometeu repetidamente fidelidade à ‘história e à tradição’, elimina, assim, um poder equitativo firmemente fundamentado em séculos de princípios e práticas equitativas”. “Nenhum direito está seguro no novo regime jurídico que a corte está criando. Hoje, a ameaça é ao direito à cidadania por nascimento. Amanhã, um governo diferente pode tentar apreender armas de fogo de cidadãos cumpridores da lei ou impedir que pessoas de determinadas religiões se reúnam para cultos religiosos. Como não quero ser cúmplice de um ataque tão grave a nosso sistema jurídico, eu discordo”, escreveu a ministra.
A ministra Ketanji Brown Jackson declarou que escreveu um voto dissidente separado para enfatizar um ponto conceitual chave: “A decisão da corte de permitir ao Executivo violar a Constituição, no caso de pessoas que ainda não processaram o governo, é uma ameaça existencial ao Estado do Direito”. É importante reconhecer, diz a ministra, que a tentativa do Executivo de anular as injunções universais é, no fundo, um pedido de permissão deste tribunal para se envolver em comportamento ilegal.
“Quando o governo pede à corte que não permita que os tribunais inferiores proíbam ações executivas universalmente como solução para condutas inconstitucionais, o que está dizendo, na verdade, é que o Executivo deseja continuar fazendo algo que um tribunal determinou que viola a Constituição. Com a decisão de hoje, a maioria atende amplamente ao desejo do Governo. Mas, se este país quer persistir como uma nação de leis e não de homens, o Judiciário não tem escolha a não ser negá-lo”.
“Em termos simples, ter um sistema de governo regido pela norma jurídica significa que todos são restritos pela lei, sem exceções. E para que isso realmente aconteça, os tribunais devem ter o poder de ordenar que todos (incluindo o Executivo) cumpram a lei, ponto final. Concluir o contrário é endossar a criação de uma zona de ilegalidade, dentro da qual o Executivo tem a prerrogativa de aceitar ou rejeitar a lei como bem entender. E onde indivíduos que, de outra forma, teriam direito à proteção da lei se tornam sujeitos aos caprichos do Executivo”.
“Diferentemente de um sistema de governo baseado na norma de um rei, em um regime baseado no Estado de Direito quase todo ato de governo pode ser contestado por meio de recurso à lei. Neste país, o Executivo não está acima ou fora da lei. Consequentemente, quando os tribunais são chamados a julgar a legalidade das ações dos demais poderes do governo, o Judiciário desempenha um papel essencial no processo democrático”, concluiu a ministra.
(Fonte: ConJur)
